[Resenha] As lições do Titanic.
Depois de 101 anos repousando no fundo do mar, o Titanic continua despertando interesse. Desvendar os inúmeros mistérios que envolvem a tragédia desperta a curiosidade de pesquisadores, cineastas, mergulhadores, escritores e pessoas comuns. Pois o escritor
JP Veiga transformou a curiosidade em um livro onde retrata de forma criativa a história do insubmergível misturando habilmente invenção e realidade.
O mais célebre dos naufrágios volta à tona
Escrever sobre um tema conhecido é sempre um risco, e temas reais que migram para a ficção apresentam um desafio ainda maior. Além do conhecimento prévio da história, que (pode) elimina(r) da narrativa o elemento surpresa, há que se considerar que transpor pessoas de carne e osso para o universo ficcional nem sempre resulta em bons e críveis personagens. Ou acabam sendo uma mera cópia do real, ou distanciam-se tanta de seus alter egos que acabam por imprimir um certo estranhamento ao texto.
Contrariando as premissas descritas acima, JP Veiga, em seu Robinson Titanic, cria uma obra singular a partir da miscigenação entre realidade e ficção sem resvalar para a repetição equivocada. Trabalhando com uma história real que já faz parte do imaginário coletivo, e que teve no filme “Titanic”de James Cameron o ponto alto da ficcionalização, o autor ousa transformar o acidente do “insubmergível” num misto de drama, aventura e romance capaz de instigar o público jovem, cuja aproximação com o tema vem exatamente de outras obras de ficção. E ele faz isso sem abrir mão do elemento surpresa, o que, em se tratando do assunto em questão , não é pouca coisa.
A ousadia de JP Veiga começa pelo narrador. A escolha de uma voz “mecânica” pode iludir quem imagina que o autor buscou um ponto de vista objetivo e distanciado dos acontecimentos. Denominado simplesmente de “o Olhar”, esse narrador quase pode ser confundido com a objetiva de uma lente cinematográfica, não fosse o texto essencialmente um romance (e não um roteiro) e o narrador, profundamente envolvido emocionalmente para uma suposta máquina. “Não, este livro não é um roteiro de filme. Foi escrito para fazer uma brincadeira com o leitor para que ele tente lê-lo como quem assiste a um filme (…) dando os pontos de vista (ponts of views) exatamente como se a câmera (o Olhar) estivesse em sua visão, nos seus olhos, no seu Olhar”, avisa JP Veiga já na apresentação. Também aí ele brinca com o fato de que a memória mais forte que os jovens têm da catástrofe venha justamente do filme de Cameron. E, assim como em um filme, o livro conta com uma trilha sonora, apresentada em forma de citações musicais ao longo do texto com sua respectiva indicação de onde encontrá-las na internet. E não apenas as músicas, mas também os demais sons estão presentes no texto, reproduzindo, por vezes, a estranha sensação de estarmos de fato “sentindo” a atmosfera densa da narrativa.
O ponto de partida da história simula outras versões já produzidas sobre o mesmo acontecimento: a obsessão por encontrar no fundo do mar algo que elucide ou revele segredos do transatlântico afundado e seus passageiros. Mas a forma como a narrativa se desenrola, e o caminho que vai tomando, é que faz do livro uma experiência única. JP Veiga convida o leitor a montar o quebra-cabeça em que mistura referências pop (a começar pelo próprio título), mitologia (em referências como a Caixa de Pandora) e cianobactérias com figuras reais como o capitão Edward Smith, o telegrafista Jack Philips, o bilionário J.J. Astor e o explorador marinho Robert Ballard, que descobriu a localização exata do naufráfio em 1985. Tudo isso com um toque à la Julio Verne.
Permeando todo o livro subjaz a ideia de que o destino não só é algo que nos aguarda mais adiante como também algo que nós mesmos construímos, assim como a eterna busca por um lugar onde nos sintamos ajustados ao mundo. Seja na superfície ou no fundo do mar, dentro dos destroços de uma navio afundado há cem anos.
(a resenha acima foi publicada originalmente no jornal O Globo em 03/8/2013)
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JP Veiga |
Destaque
Em tempos de mídias digitais, as fronteiras entre os suportes culturais têm ficado cada vez mais tênues. Criar histórias significa pensar em todas as possibilidades possíveis de envolver o leitor na experiência narrativa. Quanto mais ele sentir-se dentro do livro, melhor. Bons livros fazem isso naturalmente, mas temos inúmeras possibilidades de alargar essa experiência.
JP Veiga explora com muita criatividade as intersecções entre mídias. Toda a história é vista a partir do Olhar, um aparato mecânico que simula os movimentos de uma câmera sem, no entanto, fazer da narrativa um enredo cinematográfico. Ao incorporarmos recursos de outras mídias, temos condições de expor situações e sensações para além do esperado pelo leitor. Outra apropriação feita pelo autor é a sonora. Ao longo dos capítulos vai sugerindo músicas para compor o ambiente da cena, com o respectivo endereço digital onde é possível encontrá-las e ouvir cada uma enquanto lê o livro. Amplie a experiência literária do seu leitor e surpreenda-o positivamente!
Robinson Titanic
JP Veiga
Escrita Fina Edições
160 páginas
E você, conhece algum livro que também misture estímulos de outras mídias?
Tags: escritor | história | resenha