A literatura acontece em Lúcia Bettencourt.
Já falamos aqui no blog sobre como concursos literários podem ser uma boa forma de ter seu primeiro livro publicado. Lúcia Bettencourt é um belo exemplo de como transformar uma oportunidade em sólida carreira. Ela venceu o Prêmio SESC de Literatura 2005 na categoria contos, e desde então publicou seu segundo livro de contos, um romance e um livro de ensaios, além de obras voltadas para o público infantil, participação em coletânea e contos traduzidos para revistas estrangeiras. Isso sem falar nos concursos de contos que venceu e nos cursos e palestras que dá pelo Brasil e no exterior. Abaixo a entrevista que Lúcia Bettencourt concedeu ao blog falando sobre livros, processo criativo, diferença entre conto e romance e a visão que ainda existe no Brasil de “literatura feminina”.
A literatura acontece em Lúcia Bettencourt
Escritora, professora, mestre pela Yale University e doutora em Literatura Comparada pela UFF. Quem há de dizer que a literatura não acontece nessa mulher, que teve seu primeiro livro publicado graças a um concurso literário? Seja escrevendo livros de contos, romance ou ensaio, seja estudando a própria literatura, participando de feiras literárias ou dando palestras e cursos no exterior, Lúcia traz nos olhos o brilho de quem consegue juntar paixão e trabalho em uma mesma palavra: literatura.
Seu primeiro livro lançado, o volume de contos A secretária de Borges, venceu o Prêmio SESC de Litertura em 2005. Na sua opinião, de que forma vencer um concurso é uma boa porta de entrada para o mercado editorial?
Lúcia Bettencourt: Uma excelente porta de entrada, pois você já publica o livro com uma chancela de qualidade, mas é preciso tomar cuidado para que não seja também a “porta de saída”. Muitas vezes o autor premiado se vê tomado pela síndrome do segundo livro e não consegue escrever outra obra, com medo de não atingir o mesmo patamar do primeiro.
Com mestrado em Yale e doutorado em Literatura Comparada pela UFF, de que maneira a teórica influencia a escritora? Ou escrever é que lhe dá subsídios para pensar a literatura?
Lúcia Bettencourt: Comecei a escrever muito antes de entrar para a Universidade, portanto creio que é minha paixão pela leitura e pela escrita que me tornaram uma estudiosa do assunto. Mas, uma vez de posse de ferramentas teóricas tenho outro olhar para meus próprios textos, portanto essa é uma via de mão dupla.
Como é o seu processo criativo? Segue um planejamento do que vai escrever, tem horários determinados para produzir, ou segue mais o seu impulso criativo?
Lúcia Bettencourt: Minha vida sempre foi muito “louca”, e precisei “arranjar” tempo para me dedicar à escrita. Adquiri alguns maus hábitos, como nunca planejar nada (pois sempre alguma coisa pode acontecer para alterar todos os meus planos). Já enfrentei catástrofes como um piripaque no computador que apagou toda a pesquisa para minha tese, por exemplo. Tive que recomeçar do nada. Em condições ideais, gostaria de me sentar todas as manhãs para escrever, e ter as tardes livres para ler. De noite, gosto de sair, encontrar com os amigos, ou apenas ver um filme e relaxar. Mas vou fazendo as coisas como consigo, e não como gostaria…
Em 2012 você publicou seu primeiro romance, O amor acontece. Como foi essa transição das narrativas curtas, que seguem uma estrutura diferente, com menos personagens e situações que quase sempre caminham para um final inesperado, para uma narrativa longa e muito mais detalhada?
Lúcia Bettencourt: Na verdade, minha preferência é por escrever contos, e por isso estou tão feliz com o fato de que uma contista, Alice Munro, tenha recebido o Nobel de Literatura este ano. Pois isso revela que os editores estão voltando a valorizar os contos, um dos gêneros mais antigos e tradicionais da literatura. Aposto que, nos primórdios, nossos antepassados se reuniam em volta de uma fogueira para contar seus “contos” os quais explicavam o mundo. O romance é um gênero que nasceu com a burguesia (olha meu lado teórico se manifestando) e tem sofrido muitas transformações. No entanto, tem um prestígio muito maior que o conto. Hoje em dia, porém, com as mudanças nos hábitos de leitura e nossa ânsia pelo imediato, vejo que os contos, e até os microcontos, estão sendo mais consumidos e comentados. Quanto ao meu primeiro romance, e quanto ao segundo, também, que deve sair no semestre que vem, só o que posso dizer é que tive um prazer enorme em conviver com os personagens que criei. Curti cada diálogo entre a Mariana e o Fábio, em O amor acontece e fiquei com pena quando o livro terminou. Acho que até poderia ter escrito mais um pouco, mas estava ansiosa para receber o feedback dos leitores, que foi extremamente positivo. O próximo romance é bem diferente do primeiro, e é uma história muito mais triste, fala da morte de Rimbaud, um poeta extraordinário e nasceu do meu desejo de me despedir dele, de acompanhå-lo em seu final, tão angustiante. Sei que, ao terminar o livro, tinha a impressão de que ia encontrá-lo sentado no sofá de minha sala, no cantinho onde terminei de escrever a história. Porque sou assim cheia de manias, depois que engreno num livro, tenho de usar sempre o mesmo computador e sentar no mesmo lugar… Manias… Loucuras… Essas coisas nos ajudam!
Além dos contos e do romance, você também tem um livro de ensaios, O banquete: uma degustação de textos e imagens. Escrever não-ficção requer um rigor e um comprometimento maiores do que escrever ficção?
Lúcia Bettencourt: Não o rigor e o comprometimento são os mesmos! Mas o prazer de flanar, só mesmo na ficção. No ensaio precisamos ter uma idéia formada já ao iniciarmos o texto, temos uma tese e vamos prová-la. Na obra de ficção podemos nos deixar levar pela imaginação, e o próprio fluxo da narrativa nos leva, às vezes, para onde não esperávamos. Não quero dizer que tudo seja fluido e livre na ficção, pois chega um ponto em que as coisas ficam de tal maneira encadeadas que só vemos um único caminho a seguir. Agora, o prazer da realização é tão intenso que chega a ser até difícil descrever. Completar um livro, ou mesmo terminar um conto, é uma delícia!
Lúcia Bettencourt: Os livros infantis são presentes para meus netos, que me pediram um “livro de verdade”. Quando me admirei e perguntei o que era “livro de verdade”, meu neto mais velho respondeu sem titubear: “É aquele que eu sei ler. Tratei logo de escrever alguns para ele, e três já foram publicados. Foi pela orientação dele que enveredei neste jogo de parônimos (palavras quase iguais, com diferença de uma única letra). Agora ele está em outra fase, me encomendou livros de aventuras. Já escrevi um e acho que passei no seu crivo. Agora estou escrevendo o segundo, e espero que minha editora, Escrita Fina, publique estes também. Conto com isso para aumentar meu prestígio frente a meus netos!!!
Você participou da coletânea O livro branco, organizada por Henrique Rodrigues e cujos contos foram criados a partir de músicas dos Beatles. De que forma escrever a partir de uma base pré-definida, no caso, uma música, provoca resultados diferentes de escrita? Ou não há diferença na hora de criar?
Lúcia Bettencourt: Na verdade não foi bem uma base pré-definida. O Henrique perguntou se eu estaria interessada, se alguma música me provocava vontade de escrever, pude escolher a cancão, e eu não tive problemas com isso. Na verdade, sou uma fã dos Beatles e essa oportunidade de escutar de novo velhas melodias e de relembrar toda uma época foi altamente prazerosa. Acabei optando por fazer uma história que contasse as transformações de uma mulher que dá o fora num namorado sob o ponto de vista desse namorado abandonado, um homem perplexo com a liberação feminina. E fui contando as modificações a partir das próprias musicas da época, não só dos Beatles, mas de outros sucessos variados.
Em 2009, você participou da Primeira Conferência de Escritoras Brasileiras em New York. Como você vê uma postura ainda comum no Brasil de classificar o trabalho das escritoras nacionais como “literatura feminina”, independente das características de cada obra, muitas vezes tão díspares?
Lúcia Bettencourt: Esse é um dilema que as mulheres precisam enfrentar. Não sou a favor de rótulos, que acho sempre empobrecedores. Mas, numa determinada fase, é importante para as mulheres, os homossexuais, os indígenas e os afrodescendentes empunharem suas bandeiras de literatura feminina, gay, lésbica, indígena, afro ou seja lá o título que quiserem dar. Isso abre espaço, provoca discussão, amplia as questões de Gênero (e escrevo em maiúsculas para diferenciar dos gêneros literários). Acho que esses rótulos, porém, são empobrecedores e colocam obras muito distantes umas das outras num único saco, que poderíamos chamar de “saco de gatos”! Na verdade, a literatura é sempre um exercício de empatia, de “empowerment” ou seja, de oferecer a voz àqueles que se encontram silenciados. Gosto, pessoalmente, de criar personagens masculinos, e até me divirto quando alguns leitores se surpreendem com o fato de eu ser mulher e estar escrevendo do ponto de vista de outro sexo. Creio que assim deixo entrever como uma mulher imagina ser esse ponto de vista, num exercício de empatia. O ideal seria falarmos apenas em Literatura, sem qualificações de nenhuma espécie, embora nos EUA ainda haja muita demarcação e as universidades continuem oferecendo Women’s Studies e nas livrarias se encontre uma sessão em separado para Literatura Feminina, outra para Gay and Lesbian, outra para African-American, etc. Encaro isso como uma “divisão operacional”. Alguns professores ensinam Literatura Francesa, outros Brasileira e outros Russa. Alguns preferem ensinar Literatura Feminina e terem a oportunidade de juntar autoras de diferentes nacionalidades e diferentes estilos. Hoje em dia acho que já não se trata mais de uma bandeira a ser defendida, mas sim de uma abordagem para estudo. Detesto são as maneiras preconceituosas de falarem de excelentes autoras de literatura, sem nem ao menos conhecerem seus textos, tentando diminuí-las por que são do sexo feminino. E na insistência em qualificar seus textos como “suaves”, “delicados” , “intimistas” quando muitas vezes não têm nenhum desses predicados.
Que dica você daria para o escritor iniciante, aquele que é movido pela paixão da escrita mas muita vezes não sabe por onde começar ou de que forma começar?
Lúcia Bettencourt: Escreva. Leia muito, escreva muito, sem se importar com o estilo, com o formato, pois essas coisas se resolvem com a prática. Costumo lembrar que todo o talento do mundo não vale nada sem a prática, de preferência diária! Ronaldinho, Romário, por mais talentosos que fossem, quando ficaram fora de seus treinos também perderam os lugares em seus times. Leia muito, aprenda com os mestres, e escreva sempre, sobre tudo. Aprenda a se expressar por escrito, tente comentar tudo por escrito. E não acredite em conselhos. Cada um encontra seu próprio caminho, na verdade há tantos caminhos quanto há escritores 😉
Quem quiser conhecer mais sobre Lucia Bettencourt pode visitar o seu blog.
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