Arlequim, Pantaleão, Capitão, Polichinelo, Colombina… Personagens que nos acostumamos a encontrar representados nas populares marchinhas de carnaval são, na verdade, herança da commedia dell’arte italiana. Surgida entre os séculos XV e XVI, a manifestação artística prima por extrapolar os limites das convenções da época e abusar dos figurinos coloridos, da alegria e do improviso nas cenas. Os artistas chegavam em suas carroças e apresentavam-se em ruas e praças públicas, tal qual o personagem saltimbanco que dá título ao romance de Marisa Ferrari, Arrabal e a noiva do capitão – cujos direitos foram adquiridos para a TV Globo e será transformado em minissérie.
A história se passa em Nápoles, Itália, no início do século XVIII, e mescla as aventuras de uma trupe de artistas liderada por Arrabal com uma trama de disputa entre dois irmãos, que irá culminar na paixão que ambos dividem pela mesma mulher. Arrabal e Giordano não poderiam ter escolhido caminhos mais diferentes: um é artista, vive livre e faz somente o que gosta – mas para isso teve de fugir de casa e perder o respeito do pai; o outro é capitão-chefe da Guarda Real e fruto de admiração paterna. Arrabal vive a entrega ao amor, Giordano vive fugindo dele. No meio deles, Luigia.
Arrabal é Arlecchino, o personagem que carrega consigo na máscara – da qual nunca se separa – e na capacidade imensa de sonhar e de tornar sonhos possíveis. Para si e para os outros. “Havia alguma coisa mágica naquele contato com Arlecchino. Alguma coisa que despertava, libertava, permitia. Não se passava por ele impunemente; não permanecia, pós o encanto, igual.” E é esse encanto que faz com que Arrabal transite entre dois universos tão distantes: a nobreza e os artistas.
O caráter transformador de Arrabal
Graças à escrita envolvente de Marisa, como que aquecida pela cadência da própria tarantela, o poeta Arrabal salta das páginas e parece pular à nossa frente com suas roupas coloridas, seus sapatos pontudos de Arlecchino, como a nos dizer: “Alguma coisa deve acontecer para ajudar”. Essa certeza é que o move e faz-lhe mover aos outros. Arrabal modifica as pessoas, é aquele que toca, o que traz esperança. Mas “veja, não é fácil promover mudanças. As pessoas sempre reagem ao novo. Sentem-se ameaçadas, traídas”. A mudança é uma constante na obra, que de forma primorosa nos apresenta a gênese da coragem, aquele momento mágico em que a decisão de ousar, assumir o verdadeiro eu, irrompe de forma absoluta.
Pela pena de Marisa, palavras enrodilham-se umas às outras pegando emprestada a vivacidade de seus personagens: “Giordano gostou do gesto e do sensual que havia naquela liberdade dela e considerou beijá-la em algum momento do depois”. E, tal qual Arrabal ao misturar diferenças que se amalgamam, a autora vai misturando os tons do português e do italiano e pintando a narrativa com as cores da commedia dell’arte e da história de um povo: “Ele é o Hellequin, uno diabrete de astúcia…”.
Presente e passado entrelaçam-se no texto de Marisa. A autora trabalha muito bem as idas e vindas da história sem que as mudanças de tempo signifiquem interrupção do fluxo da narrativa. Como em “os olhos negros de Gigi escaparam para aquele tempo de Natal, em que tudo ao redor se tornara branco e frio…”. Ou em “a frase pôs as cenas novamente diante de seus olhos: era uma tarde de inverno. Vincé estava sentado, na calçada da praça…”.
Com a bênção dos deuses da commedia dell’arte italiana, Marisa mergulha fundo na Nápoles do século XVII e em seus personagens icônicos, espelhando com sua escrita a alegria de viver de Arrabal: “Aquele trabalho abençoado continha em seu fazer uma tal felicidade que, por vezes, parecia brincadeira, diversão, festa.”
Arrabal e a noiva do capitão
Marisa Ferrari
Novo Conceito Editora, 2014
368 páginas
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