Respeitável público! Quero apresentá-los a um circo jamais visto. A epígrafe dessa apresentação poderia ser “de perto ninguém é normal”, como já cantou Caetano Veloso.
Você é daqueles que guarda boas recordações do circo alegre da sua infância, com palhaços e algodão doce colorido? Então prepare-se, pois Genevieve Valentine joga tudo isso por terra no livro O circo mecânico Tresaulti, que acaba de ser relançado pela DarkSide Books, com tradução de Dalton Caldas, em edição limitada de capa dura. À medida que vamos conhecendo os artistas que fazem parte do espetáculo percebemos que “normal” talvez seja a única palavra que não pode ser usada para descrevê-los.
“Boss sabe que a razão por que algumas cidades desabam após o Circo Mecânico Tresaulti ter passado por elas é que a vida de uma cidade pisca e treme quando eles estão próximos.”
A ideia de homem-máquina exerce sobre nós, ao mesmo tempo, fascínio e temor. O que está em jogo é até onde somos capazes de ir antes de perdermos totalmente a essência do que nos torna humanos. Pois em O circo mecânico Tresaulti esses limites já foram rompidos há muito tempo.
As trapezistas com esqueletos de tubos ocos, que são mais resistentes do que ossos, além de mais leves e mais fáceis de consertar quando se quebram; o homem alado com asas mecânicas em costelas feitas de ossos reaproveitados (seriam os retirados das trapezistas?) envolvidas em latão, sendo que cada pena de metal é serrada, martelada e alisada para ficar extremamente fina e cortante; o homem-forte com coluna feito de pedaços de cobre e latão com a face de um relógio ao meio e duas engrenagens em seus ombros; o homem-de-metal que faz a trilha sonora do circo, com tórax de barril de metal cercado de teclas de piano e válvulas, e o homem mecânico com um pulmões de metal são algumas das “construções” de Boss, que comanda o circo.
“A tenda é decorada com fios de lâmpadas expostas e pedaços de espelho amarrados aqui e ali para dar um brilho. (Só parece mambembe depois que você já pagou.)”
Apenas nos malabaristas e nas dançarinas ela não implantou algo mecânico. Isso faz com que os artistas dividam-se entre “os que estão vivos” e “os que sobreviveram”, com seus ossos, pulmões e molas de metal – com uma exaltada vantagem para aqueles que sobreviveram, ou seja, passaram pela oficina de Boss e saíram de lá com novas partes em seu corpo. A cirurgia é o renascimento, mas depois delas os artistas jamais poderão deixar o circo mecânico Tresaulti: “Ele [o circo] vai manter-lhe vivo depois que eu terminar de consertá-lo”, diz Boss, como se o outro estivesse estragado e não fosse ela mesma a única capaz de mantê-lo funcionando a partir de então. Afinal, ela e o circo se confundem enquanto um só.
Mas é possível consertar quem não está quebrado? Ao circo, recorrem os sem esperança, os que não têm mais lugar no mundo. Afinal, onde mais os aceitariam? “Essas são as pessoas do circo; estas são as que não têm nada a perder”. Até mesmo os que não estariam “quebrados” ansiam pelo momento em que serão chamados à oficina de Boss e ganharão seu presente mecânico. Já que, ao entrarem no circo, deixam seu nome e tudo o mais para trás.
“Little George estava previsto para ser consertado, mas Boss o mantém longe da oficina mesmo após ele ter pedido, então ele vai lentamente atravessando o tempo até ficar mais velho que Ying, até ficar quase tão velho quanto Jonah, que tem vinte e cinco anos desde o dia em que chegou ao circo e recebeu seus pulmões de metal.”
Seguindo o Circo Mecânico Tresaulti
O cenário é o pós-guerra de uma guerra que já não é possível lembrar quando começou. Ela acontece desde sempre, e isso torna o ambiente perigoso para todos – especialmente para o circo mecânico Tresaulti, que expõe o que ninguém entende, o exótico, o que se torna bizarro quando visto de perto. E é para essas cidades devastadas que Boss leva sua trupe. Mas é preciso manter distância, estar alerta, afinal os homens do governo estão por toda a parte. Assim como a guerra, o circo sempre esteve circulando por aí. Como Boss mesmo diz, o nome muda mas o circo é sempre o mesmo.
O protagonista dessa história é o próprio circo mecânico, esse organismo forjado às custas da mutilação – ou renascimento, depende do ponto de vista – de seus artistas. Artistas, na maioria das vezes, forjados ali mesmo, já que quando chegam não passam de seres abandonados pela vida. E o livro todo é uma grande imersão por trás das lonas, por dentro dos trailers e caminhões, por sob as entranhas mecânicas e humanas desses seres híbridos, ciborgues criados (quem sabe?) à imagem e semelhança do criador – nesse caso, criadora.
“Seus nomes verdadeiros não importam; ninguém no circo é de verdade hoje em dia.”
A escrita de Genevieve é uma escrita engenhosamente dissimulada. Escreve como quem joga conversa fora, de forma despreocupada e desinteressada. Mas é para olhos atentos que ela revela os detalhes da trama. Num ranger de molas, num quebrar de ossos, num corte do metal afiado é que estão os verdadeiros impulsores da história. E então percebemos que o que nos apavora é o mesmo que nos encanta. Será que o pavor vem de vermos a nós mesmos, em um possível futuro, tais quais esses homens mecânicos?
Vamos, pouco a pouco, sendo atraídos para dentro do circo. E isso graças à perfeita simbiose entre enredo e escrita. À medida que nos aproximamos do que acontece quando o espetáculo termina, o glamour criado para o grande público dá lugar ao grotesco da realidade. Essa combinação torna-se irresistível no texto instigante de Genevieve. E então “você aplaude como se sua vida dependesse disso, sem saber por quê”, como nos diz um dos mestres de cerimônia, ou melhor, um dos narradores. Sim, um deles, porque o uso de diferentes pontos de vista é um ponto a mais para a narrativa. Às vezes a mudança de narrador se dá em cenas contínuas, às vezes na repetição de uma mesma cena, que já não é a mesma depois de contada sob outro ângulo.
“Outro longo silêncio antes de Boss dizer: ‘Lá dentro’. O grifo em seu braço estava tremendo.”
Um dos grandes méritos da autora – e não são poucos – é o de não subestimar o leitor: ela não se preocupa em explicar, detalhar, esmiuçar o que não precisa – ou não pode – ser explicado. Genevieve conta com a nossa perspicácia para ir ligando os pontos, já que a narrativa não obedece uma ordem linear, é entrecortada e apresentada em um ritmo que lembra o da contradança: dois passos para a frente, um passo para trás.
E a edição brasileira traz um presente a mais para os leitores: as ilustrações de Wesley Rodrigues, elogiadas pela própria autora na introdução: “A atmosfera é fundamental em um livro como este, e seu traço proporciona um equilíbrio incrível entre detalhe e movimento, sem jamais perder a sensação de mistério presente no Circo Tresaulti – aquela sensação de que você nunca consegue ver a coisa toda.” As palavras de Genevieve descrevem com perfeição o trabalho do ilustrador: há um casamento preciso entre o texto e os desenhos de Wesley.
“Pode ser que não voltemos a uma mesma cidade durante a sua vida.”
Bem, isso é o que se pode dizer – e o que se sabe – sobre O circo mecânico Tresaulti. Há certas coisas que não podem ser explicadas, que nem mesmo uma resenha pode conter. Coisas que só é possível sentir, coisas que rompem os limites do circo – tal qual Boss rompe a carne de seus artistas para inserir o metal – e imiscuem-se sob nossa pele de tal forma que é impossível traduzir em palavras. Coisas sobre as quais não se fala, coisas sobre as quais se deve ler.
O circo mecânico Tresaulti
Genevieve Valentine
Tradução de Dalton Caldas
Ilustrações de Wesley Rodrigues
DarkSide Books, 2016
320 páginas
O circo mecânico Tresaulti pode ser encontrado aqui:
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