No próximo dia 26 de junho serão comemorados os 20 anos do lançamento do livro Harry Potter e a pedra filosofal, o primeiro da saga literária criada por J.K. Rowling e traduzida para mais de 70 idiomas ao redor do mundo. Os livros da série costumam dividir opiniões: há quem ame e há quem odeie. No entanto, não é possível passar incólume ao seu sucesso, principalmente quem tem pretensões literárias. Afinal, quem se torna escritor quer ir além de escrever textos para si próprio. Pretende ser lido por outros, e de preferência MUITOS outros. E J.K. Rowling conseguiu isso com o bruxinho órfão que virou protagonista de sete livros de enorme sucesso. Por isso, goste ou não da trama, se você pretende escrever um livro vale à pena ler este post até o final e descobrir algumas técnicas utilizadas por Rowling para criar uma história capaz de arrebatar crianças, jovens e adultos até hoje.
Desconstrução da narrativa de Harry Potter
Neste post, vamos olhar atentamente para alguns recursos narrativos utilizados por J.K. Rowling no livro que inaugura a série, Harry Potter e a pedra filosofal. A autora trabalha de forma eficiente técnicas próprias ao processo criativo literário a fim de construir uma história envolvente e que entregue ao leitor exatamente o que ele está esperando. Mesmo apesar de todo o sucesso, e passados 20 anos, há muitas pessoas que não leram o livro, então se você é uma delas, saiba que vai encontrar spoilers mais adiante. Mas é claro que você pode ler este post assim mesmo e aproveitar as dicas mostradas.
O primeiro livro começa com uma situação que contrasta os dois mundos que coexistirão ao longo de toda a saga: o mundo bruxo e o mundo trouxa (para quem não está familiarizado, trouxa é como são chamados os não-bruxos no universo Harry Potter). Três bruxos – Dumbledore, McGonagall e Hagrid – aparecem na porta de uma casa habitada por trouxas para deixarem ali um bebê. A ideia de um bebê deixado – ou abandonado – perpassa muitas histórias, contos de fada e, inclusive, narrativas bíblicas, como a de Moisés. Essa cena também traz embutida a técnica da Regra de Três (já vista neste post), formada pelos três bruxos, sendo que Hagrid representa o terceiro elemento desastrado.
O protagonista costuma trazer consigo um fantasma ou uma ferida que não o deixa esquecer de seu passado. No caso de Harry Potter, isso está fisicamente visível na cicatriz em forma de raio na sua testa. Essa é uma lembrança dolorosa de que se tornou órfão porque Voldemort (o grande bruxo do mal) matou seus pais quando era bebê e deixou-lhe essa ferida ao não conseguir matá-lo também.
Antes de começar a aventura propriamente dita, o protagonista deve ser apresentado no seu mundo comum – que mais tarde será virado do avesso pela aventura empreendida. Aqui, somos apresentados ao mundo trouxa, a rua e a vidinha que Harry compartilha com seus tios e seu primo não bruxos, e como é atormentado por eles. O chamado para a aventura – que é o que coloca o protagonista no trilho da história a ser contada – acontece quando Harry começa a receber as inúmeras cartas de Hogwarts (que seu tio o impede de ler) e, depois, quando Hagrid aparece para levá-lo para a Escola de Magia. É aí que Harry atravessa o limiar e entra definitivamente no mundo especial, coração da história.
Mais recursos narrativos em Harry Potter
O primeiro livro da série é um ótimo exemplo da estrutura mítica utilizada em antigas histórias e lendas das diversas culturas. A jornada apreendida pelo herói, ou protagonista, é longa e compreende grande parte da narrativa. Há o encontro com o seu antagonista, quando Harry é apresentado ao professor Quirrell na taverna que dará passagem ao Beco Diagonal, a representação de Voldemort – mas nesse momento, nem nós sabemos disso nem Harry. A taverna (ou lugar similar) é algo recorrente na jornada mítica. Quem não se lembra da cena na Cantina em Star Wars e o bar nepalês em Caçadores da Arca Perdida? A entrada no mundo especial (que contrasta com o mundo comum onde o protagonista costumava viver) é bem representada quando Harry chega ao Beco Diagonal acompanhado de Hagrid, um lugar onde bruxos aportam em busca de ítens mágicos. Lá ele encontra um mundo que nunca pensou existir. Uma analogia possível é com a cena de O mágico de Oz do momento em que Dorothy coloca o pé para fora de sua casa, iniciando a jornada até Oz.
Um protagonista precisa de utensílios, ferramentas que o ajudarão na sua jornada. Harry Potter encontra tudo isso no Beco Diagonal: varinha, ingredientes para poções, livros, coruja… Inclusive é quando ele vislumbra a vassoura Nimbus 2000, que aparecerá mais à frente, quando Harry estiver para estrear no quadribol e receber uma dessas como presente. Aqui, aliás, entra em ação um outro recurso narrativo: o plant/payoff (que em português seria algo como plantar/entregar). Esse recurso consiste em “plantar” algo anteriormente na história para, mais tarde, mostrá-lo novamente desempenhando uma função importante na narrativa. Desse forma, o leitor sente-se confortável em reconhecer um elemento que já foi apresentado a ele e agora será de grande utilidade para o protagonista. De outra forma, quando isso não acontece, ficamos com aquela sensação: “de onde saiu isso”, uma solução tirada da manga sem nenhuma referência anterior na trama. E, no Beco Diagonal, temos novamente a Regra de Três em ação. Quando Harry vai escolher uma varinha para si, ele experimenta duas, que mostram-se um completo desastre em suas mãos, e apenas a terceira responde como o esperado. Aliás, a Regra de Três entra em ação também na escolha de mais dois companheiros de aventuras para Harry: Rony e Hermione. Assim, forma-se a tríade que seguiremos por todos os livros.
Todo protagonista precisa trazer consigo um desejo externo e um desejo interno (ou necessidade). O desejo externo é o que ele acha que precisa, a necessidade é o que ele precisa de fato mas, na maioria das vezes, não tem consciência disso. Harry tem um desejo externo muito claro: ver-se livre da sua família trouxa, já que viver com eles é um tormento. Mas o desenrolar da trama vai mostrando que, por trás disso, há uma necessidade que o personagem não reconhece a princípio: usar o seu poder para o bem e tornar-se um líder benevolente do mundo mágico. E o personagem também carrega uma sombra sobre ele: terá Voldemort morrido? Ou continua vivo representando uma ameaça para ele? Aqui reside a questão central desse primeiro livro: Voldemort virá atrás de Harry Potter e o pequeno bruxo terá aprendido magia o suficiente para sobreviver a outro ataque?
Já próximo do final, depois de a tríade de personagens centrais ter sofrido vários reveses para alcançar seu objetivo, acontece a famosa cena do xadrez gigante. Aqui vemos outro exemplo da técnica plant/payoff, visto que no início da trama fomos apresentados ao xadrez de bruxo, quando Harry e Rony jogavam e Hermione fica assustada com a revelação de que as peças se destróem de verdade. Então, quando nos deparamos com os três tendo que jogar uma partida do xadrez gigante para vencerem mais essa etapa, entendemos que aquilo é um xadrez de bruxo, e alguém pode sair machucado dali.
Na confronto final, somos surpreendidos por um plot twist (uma virada inesperada na trama). O antagonista não era Snape, como o próprio Harry imaginava, mas o professor Quirrell, que lá no início da história hesita e não cumprimenta Harry na taberna. A partir daí Harry vai tendo mais revelações como, por exemplo, que quem tentou matá-lo no jogo de quadribol não foi Snape, mas o próprio Quirrell.
E, para encerrar, nada melhor do que uma cerimônia e alguns prêmios para o herói (ou heróis). Lembra-se da cena final de Star Wars – Uma nova esperança? A Princesa Leia entrega a Luke e Han medalhas como reconhecimento pelos seus feitos. Aqui também. A cerimônia é o encerramento do ano letivo e a premiação é a taça das casas, que sofre uma reviravolta com pontuações de última hora.
As cenas finais são na estação de trem, com os alunos voltando para passar as férias em casa e Harry dizendo que ele não está voltando para casa (afinal, Hogwarts passou a ser a sua casa). A história encerra mostrando a mudança que o herói sofreu ao longo da narrativa, como ele se tornou uma pessoa diferente depois de ter vencido todos os obstáculos. Protagonistas não devem terminar a história do mesmo modo que começaram, precisam sofrer mudanças. Isso se chama Arco do Personagem.
Viu como podemos tornar nossas histórias interessantes lançando mão de algumas técnicas literárias? Então, bora botar a mão na massa e escrever!
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